O vídeo era a preto e branco, e a música parecia também transportar-nos para esse ambiente, longa-metragem de estrada baseada num qualquer romance perdido, melancolia elevada ao cubo. Falamos de ‘Wicked Game’, a canção com que Chris Isaak se tornou numa estrela de renome mundial, e pela qual ninguém nada teria dado se não fosse a sapiência de um tal David Lynch, que a incluiu na banda-sonora de “Um Coração Selvagem”, de 1990. Um radialista mais atento ficou fascinado com o tema, outros tantos o acompanharam, e do nada ‘Wicked Game’ atingiu os primeiros lugares das tabelas de vendas dos Estados Unidos.

Não é apenas um êxito; é também o tipo de canção cujo eco perdura na história. Encontramos a sua aura mística na decadência do The Weeknd dos primeiros tempos; vemos os The xx adaptá-la na sua própria ternura minimalista; até os Cigarettes After Sex soam a uma banda para a qual ‘Wicked Game’ é mais que uma canção, é todo um género musical. Mas paremos de nos focar nela; seria injusto para com um artista como Chris Isaak, dono de uma voz portentosa e clássica, arrancada a ferros dos antigos, ser definido com recurso apenas à sua mais conhecida. Até porque, antes, já França tinha feito dele um caso de estudo, ao empolar ‘Blue Moon’, o seu primeiro sucesso além-fronteiras americanas.

Ao longo da sua carreira, Isaak nunca se desviou do rumo que se propôs a traçar: o da canção, pop/rock ou R&B branco. Mais que o estilo, importa como ele é feito, com amor imenso pelo trabalho de composição. 40 anos de carreira resultaram já em treze álbuns de estúdio, dois deles natalícios, em incursões pela televisão e pelo cinema, em participações como jurado em concursos como “X Factor Australia”. Isaak, o eterno solteirão, olha para a relação com a sua banda como “a mais longa que já teve”. Isaak é um homem que sabe gargalhar quando tem mesmo que ser, um conversador afável que nos recebe, via Zoom, na sala onde tem a lareira. Durante a conversa com a BLITZ, mostrou-nos o cãozinho de que estava a tomar conta, tocou-nos alguns versos à guitarra e deixou uma quase certeza: no seu próximo concerto em Portugal, a 23 de julho, no Campo Pequeno, vai ouvir-se Amália Rodrigues.

Volta a Portugal este ano. Gosta de cá vir?
Sim. Diverti-me muito, aí. Tem piada, porque conheço muita gente dos Estados Unidos que foi à Europa, mas principalmente à Inglaterra, a França, Alemanha, Itália… A maioria das pessoas que conheço, que foi à Europa, nunca foi a Portugal.

Sei que é um grande fã de Amália Rodrigues. Quando e como é que descobriu a música dela?
É uma boa história. Há uns anos, o meu irmão, que já faleceu, tocava baixo numa banda punk, em Los Angeles. Fui a casa dele, e tive de dormir no chão. Não tínhamos dinheiro, sabes? Éramos músicos sem dinheiro. Dantes, aquilo era um albergue, um sítio onde as pessoas podiam alugar um quarto por uns 25 cêntimos. Um edifício muito velho. Eu tinha um saco-cama e um pequeno rádio a pilhas. Eram umas três da manhã, e estou a ouvir rádio; não havia mais nada no edifício além de um saco-cama, um rádio e um telefone. E ouço uma canção numa rádio mexicana, e fico: “Uau! Esta mulher é extraordinária!” Levantei-me e fui buscar a lista telefónica, à procura do número de telefone da rádio. Tive de esperar que atendessem, e eram já umas quatro da manhã quando chego à fala com o DJ. Disse-lhe que tinha passado uma canção que era linda, e eu queria saber o nome da cantora. Ele responde que não mo saberia dizer sem saber o título da canção. Respondi que não sabia, mas que podia cantar um trecho: “Encontrei meus sonhos de abril em Portugal com você…” [de ‘Coimbra’, conhecida internacionalmente como ‘April In Portugal’]. E ele responde imediatamente: “Amália Rodrigues”! No dia seguinte, comprei todos os discos de Amália Rodrigues que consegui encontrar.

Mas em português, certo? Não percebeu as letras…
Ela também canta a ‘Coimbra’ em inglês. [recita os versos em inglês] Sempre que ouço essa canção… Não entendo. Começo a chorar. Não é uma reação que tenha com outra canção qualquer, adoro-a.

É uma reação que muita gente terá, provavelmente, com a ‘Wicked Game’.
Ficaria muito sensibilizado por saber que as pessoas sentem algo assim [com a ‘Wicked Game’]. Até porque quando a ouvi cantar, nessa altura, as pessoas perguntavam-me se estava a ouvir a Madonna. E eu respondia: “estou a ouvir Amália Rodrigues”… Ouçam as duas e digam-me qual é a melhor.

Não há comparação possível.
Não. Uma é uma estrela pop, e uma grande estrela pop. A Amália é uma cantora para a eternidade. Quando tocámos em Portugal, obriguei a minha banda a aprender a tocar o início dessa canção. E eles responderam que ninguém ia reconhecer uma canção tão antiga… Tocámo-la, e o público começou a cantar connosco. Ficaram espantados por toda a gente conhecer essa canção. Respondi que era normal, era a canção deles [dos portugueses].

Posso portanto assumir que irão tocá-la em julho…
Gostava de tocar um trecho, um verso. Estou a pensar nisso. É muito fixe: nos Estados Unidos, não temos nenhuma canção que toda a gente cante, que seja assim tão grandiosa. Temos o hino nacional, mas não acredito que alguém diga que o hino tem uma bela melodia, que a ache uma bela canção. É espetacular que um país tenha algo de que possa dizer: “isto é nosso.”

“Tenho um lado em que às duas, três da manhã meto-me na cama e penso que não há significado em nada porque daqui a meio século seremos todos pó. É por isso que gosto de dar concertos, faz-me sentir vivo”

Quando começou, foi comparado a grandes nomes como Roy Orbison ou Elvis Presley. Tomou-o como elogio ou uma enorme responsabilidade?
Ambos. É um grande elogio, mas… Imagina que tens um barco a remo e o estacionas ao lado do “Queen Mary” [um antigo navio de cruzeiro]. O teu barco fica a parecer tão pequenino… Eu tenho uma versão da ‘Oh! Pretty Woman’, do Roy Orbison, e acho que canto bem; orgulho-me da minha voz. Mas depois ouço a versão dele e penso que o melhor é continuar a trabalhar…

Quando ‘Wicked Game’ se tornou num êxito, a sua vida mudou. Há relatos de concertos seus, em 1991, de filas de raparigas adolescentes a gritar… Como foi lidar com este tipo de ‘Beatlemania’?
À altura, não tínhamos atingido ainda aquele tipo de sucesso em que toda a gente ouviu o teu disco. Tínhamos tido um êxito em França, com a ‘Blue Hotel’. Quando íamos a França, depois de só tocar em clubes noturnos nos Estados Unidos, tínhamos umas mil e quinhentas, duas mil pessoas à nossa frente. É estranho dizê-lo desta forma, mas tive um produtor, o Erik Jacobsen, que me disse: “quando tiveres sucesso, nunca vais conseguir aproveitá-lo no momento”. Perguntei-lhe o que queria ele dizer com aquilo. É ir a programas de televisão, dar concertos, gravar outro álbum… Quando se tem um êxito, trabalhas dia e noite sem parar.

Agora tem mais tempo para descansar e pensar nisso.
Sim. Mas, sabe, ainda gosto de… Neste momento, estou em minha casa em Nashville. Estamos, eu e a minha banda, a ensaiar para os concertos na Europa. E agora somos velhos; seria de esperar que dissesse que não é preciso ensaiar, que ando a fazer isto há 40 anos, que já devia saber tudo. Mas eu insisto: vamos trabalhar nisto, vamos colocar aqui uma harmonia…

É perfeccionista?
Sim, até certo ponto. Não sou minucioso mas, quando tocamos ao vivo, não quero soar a uma banda de bar; quero estar acima disso. Quando as pessoas nos vêm ver, quero que digam que soamos tal como nos discos.

Cresceu a ouvir artistas como Dean Martin, Bing Crosby, Elvis, em vinil, mas tornou-se popular na era do CD. Agora estamos na era do digital. Como alguém que passou por todas estas fases, qual crê ser o melhor formato para se ouvir música, e o que acha do ressurgimento do vinil?
A início, pensei que esse ressurgimento era só nostalgia. Mas acho que já vai para além disso. O melhor formato… Era fantástico quando se chegava com um CD e eu pensava: podemos tocar-lhe, não temos de ser tão cuidadosos com ele, é forte, aguenta-se. Mas, se os vais comparar a todos, não há melhor que um gira-discos, empilhar vários discos de vinil, tocar três ou quatro, um lado de cada. Porque os discos geralmente têm um lado mais rápido, um mais lento, um mais romântico, um lado rock. E tu pensas: “ok, estou a sentir-me romântico, vamos ouvir o Frank Sinatra”. Depois apetece-te ouvir rock, metes os Kinks. Tocas três ou quatro discos, cinco ou seis canções de cada, sabores diferentes. É muito difícil fazer isso com um CD. Podes passar as faixas à frente, mas… É demasiada música! É quase como no computador. Podes fazer uma playlist com umas duas mil canções, mas porquê? Somos seres humanos, o cérebro humano não consegue aguentar duas mil canções. Não queremos ouvir duas mil canções. Queremos, no máximo, ouvir umas vinte, e depois ir ver televisão, comer uma sandes. Nisso, os discos de vinil aguentam-se bem.

E têm capas incríveis. É algo que se perdeu com a digitalização.
Adoro olhar para as capas. É muito fixe pegar num disco de vinil, olhar para a cara de alguém, como a do Elvis, e dizer: “Uau, ele é mesmo bonito.”

Por vezes, as capas até são melhores que a música.
Sim! Já comprei discos porque achei a capa espetacular, mas o disco em si não era bom. Conheces um tipo chamado Shane Fenton? Tem uma fotografia dele a fazer uma pose rock n’roll, todo dobrado, com a guitarra, e tu só pensas: “quem é este tipo?”

O seu último álbum foi de Natal [“Everybody Knows It’s Christmas”, de 2022]. Está a trabalhar em material novo?
Sim. Espero regressar desta digressão e começar a gravar.

Já tem alguma canção terminada?
[Começa a tocar e a cantar um tema inédito] “Naked and pretty, I like what I see/ I see your picture in a men’s magazine”… Estou sempre a trabalhar em canções novas. Tenho tantas que o que estou a fazer por agora é listá-las, organizar as ideias de que gosto mais. Depois, escolho umas vinte e termino-as.

Qual é a melhor altura para se trabalhar numa canção?
A meio da noite. Só que agora estou a fazer de babá do cão da minha agente, que está doente. Como tal, às vezes estou a tocar guitarra e vejo que ele está a olhar para mim, do género: “estás a aborrecer-me”… Tenho de rebolar no chão, tirar uma meia e deixá-lo perseguir-me pela casa. A vida continua.

Em 1991, num concerto em Londres, disse ao público que ias tocar uma canção nova: “Se gostarem, iremos gravá-la para o próximo álbum, e se não, vamos vendê-la aos Milli Vanilli.” Já compôs para outros artistas?
[Risos] Já o fiz, por acaso. Recentemente, e não sei se deva dizer quem é, houve uma grande estrela pop a pedir-me para compor algo. E eu fui. Que remédio: ou era isso ou estar em casa a ver televisão. Gosto de tocar guitarra, gosto de compor canções. Se as pessoas precisam de ajuda, gosto de ajudar. É divertido.

Por falar em televisão, foi um dos jurados do “X Factor Australia”, ao lado do James Blunt. Ele é tão hilariante na vida real como nas redes sociais?
É muito inteligente, muito engraçado, e muito perspicaz. A dada altura, durante o programa, chateávamo-nos um com o outro porque queríamos muito que os nossos respetivos concorrentes ganhassem. Estávamos a muito pouco de andar ao soco! E depois fui para casa e pensei: “porque é que estamos a discutir sobre música? Adoro aquele tipo, vou discutir com ele para quê?” Ele foi incrível, e sabe mais de música do que eu alguma vez saberei. Sabe muito sobre a história do rock n’ roll. Tenho muito respeito por ele, é um grande cantor.

A sua música pode levar o público a pensar que é alguém melancólico, taciturno, mas toda a gente que trabalhou consigo destaca o seu enorme sentido de humor. O que é que o põe a rir?
Ó Schopenhauer. [risos] Tenho sentido de humor, mas tenho ascendência alemã e italiana; gosto de fazer piadas, mas também tenho um lado em que às duas, três da manhã meto-me na cama e penso que não há significado em nada porque daqui a meio século seremos todos pó. É por isso que gosto de dar concertos, faz-me sentir vivo. Olhas e vês as pessoas a dançar e a sorrir e pensas que o mundo é bom.

Em 1987, perguntaram-lhe onde estaria a sua carreira nos dois anos seguintes e respondeu: “Se mantiver a banda unida e gravar mais três bons álbuns, ficaria muito orgulhoso.” Termino fazendo-lhe a mesma pergunta.
Deixa-me voltar a 1987: respondo-lhe da mesma forma. Fazemos isto há quase 40 anos. Só quero continuar até não poder mais. O meu baterista tem uma boa frase, que é: a vida gira em torno de um centavo [“a vida dá muitas formas”, em tradução livre]. Nunca se sabe o que o amanhã reserva. Pelo que quero disfrutar do hoje.

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